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A escancarada distância entre o Código Penal e a realidade: e a culpa é do juiz?

Um homem, em um ônibus abarrotado, às 13h30, em plena Avenida Paulista, saca seu pênis para fora de sua calça, começa a se masturbar e ejacula no pescoço de uma mulher que estava sentada em um banco à sua frente.

Sim. Repugnante, assombroso, asqueroso.

Por ser essa a exata reação de qualquer ser humano mentalmente são, obviamente o ocorrido causou extrema revolta entre os demais passageiros do ônibus, inclusive ao motorista, que correta e incomumente fez a prisão em flagrante até que a polícia chegasse, enquanto o cobrador evitava que o sujeito fosse linchado.

Pois bem. Diego Ferreira Novaes é levado pela polícia, preso em flagrante pela eventual prática do crime de estupro (Art. 213, CP) e, um dia depois, encaminhado à presença de um juiz de direito para realização de Audiência de Custódia.

Contudo, na referida audiência, o Ministério Público pugnou pelo relaxamento do flagrante, bem como a defesa, e assim também foi entendimento do MM. Juiz Dr. José Eugênio do Amaral Souza Neto.

O Magistrado, em suma, entendeu pela desclassificação do crime de estupro para o delito previsto no artigo 61 na Lei de Contravenções Penais: “Importunar alguém, em lugar público ou acessível ao público, de modo ofensivo ao pudor”.

Isso porque, na acertada visão do julgador, “O crime de estupro tem como núcleo típico constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso. Na espécie, entendo que não houve o constrangimento, tampouco violência ou grave ameaça, pois a vítima estava sentada em um banco do ônibus, quando foi surpreendida pela ejaculação do indiciado”.

Apesar do relaxamento do flagrante, José Eugênio do Amaral considerou que o ato praticado por Novaes é “bastante grave” e resultou em traumas para a vítima. Ele também considerou o histórico do acusado, que já tem passagens anteriores por condutas que atentam ao pudor, mas ressaltou que a solução para esse problema é o tratamento psiquiátrico e psicológico, não a prisão. Veja a íntegra da decisão aqui.

Como naturalmente era de se esperar, a comoção social contra a decisão do magistrado foi enorme, sendo o juiz alvo de críticas e até ofensas, inclusive proferidas por colegas do Direito.

Contudo, resta claro que tais críticas e ataques foram direcionadas equivocadamente. Vejamos.

Nada mais fez o juiz do que aplicar a lei vigente. O artigo 213 do Código Penal rege que “Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”.

No escorreito entender do Magistrado, a conduta não se adequou ao tipo penal, por não ter ocorrido constrangimento, violência ou grave ameaça.

Os leigos, obviamente irão me perguntar agora: “Como assim ela não foi constrangida? Como assim não sofreu violência? ”

Explico: o verbo “constranger” utilizado na redação do artigo 213 do Código Penal não tem o sentido ao qual estamos acostumados a utilizar corriqueiramente no dia-a-dia, que seria no sentido de “envergonhar”, “embaraçar”, mas sim o sentido de “obrigar” ou “forçar”.

Ora, deste modo facilmente se enxerga que não houve o constrangimento, ou seja, a vítima não foi obrigada, forçada a receber o asqueroso jato de esperma em seu pescoço. Obviamente que ela não teve opção, claramente não queria recebê-lo. Contudo, ela foi surpreendida, não era esperado. Porém não se pode falar em constrangimento pois não houve coação ou coerção, para que então ela ficasse obrigada a receber a ejaculação. Ser surpreendida é diferente de ter sido constrangida, obrigada.

Ok. E quanto à violência e à grave ameaça?

A violência no Código Penal se apresenta no sentido da violência física. Sim, estamos falando de socos, pontapés, empurrões, amordaçar, puxar cabelo, segurar. Logicamente que podemos classificar, em sentido geral, que a moça foi vítima de uma violência, porém, uma violência psicológica. O tipo penal do estupro se refere à violência como o modo de constrangimento (obrigação) para que o agente “consiga” praticar conjunção carnal ou outro ato libidinoso.

No presente caso, não houve nenhuma violência real muito menos grave ameaça (alguma arma apontada à vítima, chantagens, etc.) empregadas para que Diego “conseguisse” praticar o ato libidinoso.

Para melhor entendermos, perfeitamente exemplificou o colega, também advogado criminalista, Marcelo Feller: “No Direito, quando a lei fala em violência ou grave ameaça para configurar o estupro, está falando de violência real. Não psicológica. Afinal, toda vítima de um crime, sexual ou não, sente-se “violentada”. Se sou vítima de furto, sofro uma violência contra o meu patrimônio. Nem por isso alguém poderá dizer que a violência contra o meu patrimônio pode ser interpretada como a violência que transforma um furto num roubo

Mas então estou lhes dizendo que o sujeito não merecia punição? Óbvio que não, merecia muito. Estou lhes dizendo que não houve violência sexual? Evidente que não, houve clara violência sexual.

O que aqui está se tentando demonstrar, é que o problema não foi o juiz, que cumpriu sua função como magistrado e corretamente aplicou a lei: desclassificou a conduta do crime de estupro para uma contravenção penal, que não prevê pena privativa de liberdade, e assim, que não enseja a manutenção da prisão cautelar.

O que realmente temos é um grave problema quanto à legislação, principalmente quanto aos crimes contra a liberdade e dignidade sexual. Nosso obsoleto Código Penal, de 1940, é detentor de diversas lacunas que permitem a banalização de condutas de violência de gênero como essa aqui tratada, que não são nem um pouco menos graves, mas que não encontram lastro no diploma legal.

São inúmeros os casos de violência sexual contra a mulher que vemos ultimamente nos transportes públicos pelo país. Realmente não sei se esses psicopatas e doentes encontraram uma nova modalidade de exercer sua violência machista, ou se se trata de algo que já acontece há muito tempo, e devido aos meios extremamente rápidos de comunicação e à voz que a mulher conquistou com muita luta na sociedade, estamos apenas hoje a perceber.

Fato é que em pleno 2017, após a luta incansável e imprescindível das mulheres para que cessem as supressões diárias aos seus direitos, o Código Penal teve uma única mudança que pune a violência de gênero, o feminicídio.

São fatos como este aqui debatido, que escancaram a necessidade de reformas legislativas para que haja maior tutela do Direito Penal aos direitos das mulheres. Porém, fazê-lo não cabe ao juiz.

Se há lacunas e falhas na legislação, não cabe ao magistrado distorcer o tipo penal para que se enquadre ao fato, ou vice-versa. O juiz togado deve aplicar a lei como ela é, e como foi perfeitamente executado pelo MM. Juiz do caso em tela.

No caso concreto, a decisão se deu depois de manifestação do MP favorável à soltura do acusado, que ainda não foi julgado, o que só reforça a plausibilidade jurídica da decisão. Por mais repugnante que possa ser a acusação, ao magistrado não cabia outra providência. Se a lei é omissa, não é papel do juiz ampliar seus limites, mas sim garantir ao acusado um processo justo.

Com isso, fica a esperança, do dia em que a presente discussão não seja necessária. Quando tais condutas, hoje em dia inventadas e reinventadas, banalizadas no dia-a-dia de nossa doente sociedade machista, sejam reprimidas de todas as formas pelo Direito Penal.

Mas por enquanto, fico com a grande preocupação por uma execração pública de um juiz e a colocação em xeque sua independência judicial. O Judiciário não pode ficar refém da onda punitiva, que assombra nossa sociedade atual e teima em colocar juízes sob suspeita toda vez que decidem a favor do réu, mesmo quando acertadamente o fazem.

Victor Waquil Nasralla

Advogado Criminalista.

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